Apresentação

Apresentação
(José Glauco Ribeiro Tostes) 1


Poesia. Poesia?
É muito mais apreciar
Que teorizar.
Ou melhor, theorizar...

Theoria, theatai, theos. Teoria, Teatro, Deus. O mesmo radical grego: theos, deus. Para os gregos, os deuses não tendo que lutar pelo “pão de cada dia,” gastavam seu tempo apreciando, do alto do Monte Olimpo, o espetáculo completo, total, da vida na Terra. Daí a nossa noção ocidental de verdade espetacular (contemplada tomando-se distância da “arena ou palco da vida”, isto é, quando tomamos nosso confortável lugar na olímpica platéia) e de theoria como visão oni-abrangente ou universal do mundo. Em suma, visão divina (theos!). Ironicamente, a ciência moderna, que emerge no séc. XVII, não rompeu com essa tradição cultural da razão grega até hoje. Exemplo? Lei da gravitação universal de Newton! Teoria de tudo de grandes cosmólogos norte-americanos, hoje! E aqui estamos nós... a teorizar sobre a poesia de Paulo de Carvalho.

Mas, dizem-nos alguns, poesia “é só sentimento”. Não, dizem outros. Poesia também é literatura. Em particular, todos aprendemos que ela contem dois ingredientes ... universais (!): forma e conteúdo. E eles são admitidos ser separáveis (é a famosa “análise”). E o presente texto? Vamos apostar na trilha da literatura? Comecemos tentando discernir certas características de conteúdo envolvendo o texto como um todo. Um voo geral. Em primeiro lugar, Paulo tentou agregar um conjunto de poesias de modo a formar uma grande... “hiper-poesia”. “KYRIE”. Mas a sua poesia resiste às separações clássicas. Se o sagrado é presença incontestável – e mesmo uma das marcas de sua poesia – ele dificilmente encontra-se separado do território do profano. O mesmo se diga das três dimensões do tempo: passado/presente/futuro. Não há definitivamente uma direção preferida do tempo, não há um eixo do progresso! Antes, uma visão cíclica do próprio tempo. Mas insistamos no sagrado. O último poema do texto é “Tânatos”, morte. Com este fecho, seríamos tentados a ver no elemento “sagrado” apenas um recurso estético (ou de “forma”) na poesia de Paulo. Não haveria lugar para qualquer “concretude” de “redenção final”. Mas a nossa leitura total do livro parece-nos levar a um outro olhar. O sagrado, em grande parte dos seus poemas, ficaria como que numa zona de silêncio ou de interstícios não ditos. Mas afinal, a poesia não opera nesse erótico e inesgotável jogo de luz e sombras? E o poeta pode escolher carregar suas “tintas” (suas palavras) no lado das sombras. Talvez a luz oculta, a luz-segredo (quanta poesia no par rítmico “sagrado-segredo”) se torne mais... atraente, sedutora, numa palavra: erótica. Mas afinal, qual das duas interpretações estaria “certa” na presente poesia? A ausência de qualquer conteúdo sagrado ou a luminosidade última do sagrado preenchendo completamente a sede que dele nos devora? Resposta? Não. “Pior”. Mais uma terceira possibilidade (pelo menos) abre-se na poesia de Paulo (ou quem sabe, apenas para este leitor do presente texto?): a nossa sede do sagrado não provaria absolutamente que há um conteúdo que possa saciá-la; minha sede não prova a fonte! Mas então de que solo proveria uma tal sede sem fonte? As perguntas simplesmente vão se enovelando umas nas outras. “Abismo chama outro abismo”, já dizia um salmista vétero-testamentário. Como poderá o leitor interpretar uma poesia como a de Paulo? Não estaria então ele, leitor, re-fazendo tal poesia? Melhor ainda, não estaria ele fabricando outra poesia? Mas não é isso que é afinal... a “boa” poesia? Mas tudo isso não acaba trazendo de volta a poesia ao intangível “sentimento do leitor” que lá em cima desse parágrafo colocamos de lado?

Devidamente “frustrados”, no parágrafo anterior, na tentativa de chegarmos a uma análise “pura” do conteúdo da poesia de Paulo, vamos agora a um voo geral pelo lado da forma. Não tenhamos dúvidas. Também vamos nos frustrar aqui (ou será que essa dupla frustração é a mais importante e saudável anti-frustração, que “salva” a poesia de ser plenamente redutível a análise literário-filosófica?). Salta aos olhos a subdivisão das poesias em “capítulos” cujos títulos, extraídos da liturgia católica, são extremamente ricos de simbolismo, inclusive quanto ao que poderíamos denominar de “beleza arquetípica do latim”. Tudo a serviço inquestionável (?) do sagrado. Outro aspecto mórfico da presente poesia de Paulo é o seu português extremamente rico e rebuscado. Quer a forma (estética) aqui rivalizar com o conteúdo?

Uma vez definitiva e felizmente frustrados no voo geral acima, está na hora de degustarmos cada poema do texto de Paulo. Ou pelo menos, alguns deles.

INTROITUS
Monastérion – Paulo começa (não é preciso mais dizer que é – primariamente – na apreciação ou ponto de vista do presente leitor) com uma bela metáfora (espacial) do nosso interior. Ele o fará outras vezes ao longo do texto, com outras metáforas.

KYRIE
Saga – aqui cada estrofe de cinco versos apresenta uma estrutura espacial clara: dois alinhamentos diferentes, alternando-se: o alinhamento mais interno (por onde Paulo começa a primeira estrofe) corresponderia à saga de um sujeito histórico; é o tempo propriamente dito. “Séculos e séculos nos breus”. O alinhamento mais externo (a partir da segunda estrofe) chama um sujeito heróico. Haverá mais algum sujeito?

CREDO
Tardias confissões – aqui explode o agudo contraste entre uma imensa sede de prazer, de encantamento, seja na vida, seja na morte (encantamentos que parecem confinados a um passado dourado distante, arquetípico e, afinal... sagrado) e o “desespero do dia repetido final”.

AGNUS DEI
Capitulares – parece aqui ensaiada uma poesia (pessimista) da poesia. “Parágrafos irrelevantes”. “Verbos frívolos”. “Intensa retórica”. E, afinal, “Invés dos todos – decomposições; re-talhos”. A última frase sugere: não tente a grande síntese.
Sótão – novamente, a poesia dentro da poesia: “guarda-te, poeta, das sombras”

COMMUNIO
Vasculum – aqui tudo parece indicar que o caminho vale apenas pelo caminho, sem meta alguma. Será que Paulo quer nos sugerir que essa é uma caminhada típica do poeta? (note como o poema aparece dedicado a si próprio, “ao poeta”; outra vez a poesia da poesia?) Uma caminhada desligada de projetos e de razões?
Exílios – metáfora do exílio: melhor metáfora para o caminho da vida? A eterna travessia? Novamente o tema do poema anterior.
Tânatos – talvez o mais fascinante e intrigante de todos os poemas do livro. Aqui é forte a imagem da atração ou sedução da morte: cortesã, dançarina, refulgente e bela, luzente. Imagens sempre femininas. Morte como luz e beleza. A morte transmutada em imagens de intensa ... vida. Talvez que somente estes picos eróticos e intensos de vida possam simbolizar a morte. Mas o destaque é a repetição (seis vezes); perene! Note-se também a ironia: o caput litúrgico aqui é “communio”: a morte é – sem dúvidas – um elemento “comum” a todos, sem exceção.

Uma vez definitiva e felizmente frustrados no vôo geral acima, está na hora de degustarmos cada poema da obra de Paulo.
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1Prof. Dr. Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O Autor e Sua Obra


(José Antonio de Carvalho e Silva)1

        Paulo de Carvalho, neste seu segundo livro de poesias (após o seu primeiro trabalho editado, Cantabile, 2007) propõe-se um enorme desafio: articular as sagradas escrituras e a poesia, o sagrado e o profano. E o faz utilizando uma linguagem bastante refinada, enriquecida ainda com belos termos e expressões em latim, próprios da liturgia católica, obtendo um efeito bastante elegante na forma.
        Mas o recurso à liturgia católica não implica num autor adotando um discurso religioso em seus poemas. Não. Deste discurso Paulo de Carvalho apostatou, ele é agora um homem que ratifica sua fé em DEUS, e a surpreender o Homem em sua pequenez e finitude. O poeta desdenha das empreitadas humanas. Em Memento encontramos “Vossos vulgares ofícios/ Revertem-se fugazes/ Pulvis Es Estátua/ Beijai vossos pós”.
        Mais do que meramente vulgares, os ofícios do Homem podem estar a serviço da destruição da natureza, tomada como mero fundo de reserva para satisfação, muito mais do que de suas necessidades, de sua volúpia em consumir. É a natureza acossada pela atitude de desafio própria da técnica que surge belamente ilustrada em Contrição: “Se as sementes/ Incredulamente encovadas ao solo/ Abstraem-se do germinar/ Perdoai-as, pois que em áreas inférteis, já não sabem a que frutificar...” (...) “Se os pássaros/ Ao desalento de sua palavra/ insustentáveis, pois do ar caem/ Perdoai-os, pois que sem o ramo das árvores/ Já não têm onde pousar...”
        A finitude humana está magistralmente colocada em Memento, particularmente em sua estrofe final, na divina advertência: “Memento, Homo, /Quia Pulvis Es,/ Et In Pulverem Reverteris...” (Lembra-te, Homem, que és pó e ao pó retornarás). A volta ao pó se configurará na morte, e é dela que Paulo de Carvalho irá tratar em seu último e um tanto enigmático poema, Tanatos, onde a morte é apresentada não como a sinistra portadora da gadanha a que todos nós nos acostumamos a temer, mas, sim, em sedutoras imagens femininas. A morte como um desejável resgate de nossa miserável condição humana? Um reencontro com a natureza, fêmea da qual estamos apartados nesta era da técnica? Deixemos aos leitores a compreensão que cada um venha a ter destes provocantes versos. 


1 José Antonio de Carvalho e Silva. Psicólogo; autor do livro:
Estresse no Trabalho: Machismo e o Papel da Mulher; Muiraquitã, 2006; RJ.